sábado, 31 de maio de 2025

Tudo ligado


Antontem ficámos a saber que João Bravo, um dos capitalistas reacionários que há anos financia o Chega, foi constituído arguido no chamado cartel dos helicópteros. É só uma parte dos seus negócios. A maior parte está concentrada no reforço do aparelho repressivo do Estado: menos Estado social, mais Estado penal, lá está.
 
Sim, o marxismo mais simples explica muito mais do que a sabedoria convencional. Sim, já nos tínhamos cruzado com Bravo no Le Monde diplomatique – edição portuguesa há cinco anos:

Adam Smith, uma das principais referências da economia política liberal, já nos havia alertado no século XVIII: quando os capitalistas de um mesmo ofício se reúnem para conversar, geralmente é para conspirar contra o público. No último século, capitalistas de diferentes ofícios, ou os seus representantes, reuniram-se frequentemente para conspirar contra as democracias. Em Portugal também. 

A 18 de Junho de 2020, numa quinta em Loures, como relata uma investigação do jornalista Miguel Carvalho na Visão, foi servido um belo repasto a «seletos convidados», que «pesam muitos milhões na economia nacional e até além-fronteiras»: reuniram-se para conspirar com o deputado do Chega André Ventura; a questão do financiamento deste partido não terá estado naturalmente ausente. João Bravo foi o anfitrião. Este capitalista com negócios nas áreas da defesa, da segurança e dos incêndios, necessariamente entrelaçados com o Estado, afiançou: «desde 1974 que o País se afunda». 

A investigação de Miguel Carvalho deu-nos assim a ver um momento de consolidação das mais importantes redes sociais deste partido, sem as quais a acção nas outras redes, também chamadas sociais, nunca teria a mesma eficácia, até por falta de recursos. 

Profundo conhecedor da extrema-direita portuguesa, ou não tivesse sido autor do livro de referência sobre o seu terrorismo a seguir a 1974, Carvalho já havia começado a investigar a galáxia reacionária de que é feito o Chega: de quadros fascistas à mobilização de sectores evangélicos em modo bolsonarista, passando pelos negócios mais ou menos sórdidos – da segurança ao imobiliário de luxo – de muitos dos seus dirigentes, sem esquecer as ligações internacionais ou o caldo cultural obscurantista, de onde o negacionismo climático não está ausente. É aliás neste caldo que mergulha hoje toda uma economia política neoliberal ao serviço do aumento dos poderes discricionários indissociáveis do capital e do Estado securitário.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Momento Heinrich Brüning?

“A Grã-Bretanha precisa de parar de brincar com a política orçamental”, pode ler-se no editorial de ontem do Financial Times. 


Obsessão orçamental com contas alegadamente certas que, faz-se notar naquele editorial, até do FMI, nestes assuntos insuspeito, mereceu atenção. Na terça-feira, na sua avaliação anual da economia do Reino Unido, o FMI recomendou “aperfeiçoamentos” na estrutura orçamental do país para que este possa superar a espiral de recorrentes cortes na despesa pública e/ou de aumento de impostos. 

No sentido certo, ambas as abordagens acima falham quando, cometendo um erro com consequências que, no passado, mostraram ser desastrosas, não reconhecem uma das verdades essenciais, mil vezes enunciada - por exemplo, aqui, ali, acolá, nesta forma e nestoutra - e outras tantas empiricamente provada, da política orçamental

“[O] saldo orçamental é igual à diferença entre as receitas e as despesas públicas, mas é também igual, por definição, à soma da poupança privada líquida (famílias e empresas) com o défice da balança de pagamentos. Se o sector privado decidir poupar mais, o governo não tem alternativa a permitir que o défice suba a menos que esteja preparado para sacrificar o pleno emprego; o mesmo princípio se aplica se tendências não corrigidas no comércio externo provocam crescimento do défice da balança de pagamentos. [Assim] [u]m sensato objetivo para o saldo orçamental não pode ser estabelecido a menos que esteja integrado numa visão acerca do que acontecerá a tendências autónomas e propensões na poupança líquida privada e no comércio externo. Acresce que, como essas tendências e propensões mudam, nunca será possível determinar objetivos realizáveis para o défice que sejam fixos no tempo como, por exemplo, que aquele défice nunca pode exceder algum número como 3 por cento do PIB ou que em média deve ser zero.” 

Exposta ex-ante por Wynne Godley no trecho acima, esta esquizofrenia económica neoliberal que tem a assinatura de um partido trabalhista, partido este historicamente social-democrata, mas hoje rendido ao social-liberalismo, é apenas mais um exemplo da política desastrosa do extremo-centro-direita que faz estragos um pouco por todo o planeta. 

O paralelismo com a Alemanha dos anos 1920 e 1930 torna-se, a meu ver, inevitável. 

A Grande Depressão de outubro de 1929 teve, particularmente na Alemanha, um impacto muito severo. Ainda a recuperar da destruição do seu aparelho produtivo e a arcar com as indemnizações impostas pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial, manietado pela impossibilidade de desvalorizar a sua moeda, dado o padrão ouro, o país importava mais do que exportava e, em consequência, acumulava sem cessar dívida externa. 

Com governos de extremo-centro-direita, que incluíram sempre social-democratas e democratas-cristãos, separados ou em coligação, em toda a década de 1920, mas sobretudo depois de 1929, a política económica tentou sempre, sem sucesso, ultrapassar os pesados constrangimentos acima referidos com políticas deflacionistas muito semelhantes àquelas que hoje resultam da ideologia das contas (alegadamente) certas, política aquela que gerou  altíssimos níveis de desemprego e que colocou na miséria vastos setores da população, criando um exército de excluídos e deslaçando a sociedade.

A Grande Depressão encontrou um chanceler social democrata no poder, Hermann Müller, partidário daquelas desastrosas políticas de austeridade. A Müller sucedeu Heinrich Brüning, do Partido do Centro Alemão - cristãos conservadores - que, liderando uma coligação de direita, endureceu a política deflacionista que vinha a ser seguida. 

O desemprego declarado adicionado daquele outro escondido pela desistência de encontrar empregos que não existiam, atingiu valores devastadores. Os cortes brutais na despesa social, nomeadamente no subsídio de desemprego quando este mais necessário era, o enorme aumento de impostos e a subsequente agitação social e política tinham levado ao colapso a grande coligação do chanceler Hermann Müller e ao início dos gabinetes presidenciais. 

A partir de março de 1930, o presidente Paul von Hindenburg usou poderes de emergência para nomear sucessivamente os chanceleres Heinrich Brüning, Franz von Papen e o general Kurt von Schleicher. Em 30 de janeiro de 1933, Hindenburg nomeou Adolf Hitler como Chanceler para chefiar um governo de coligação. O resto deste episódio é o que sabe: nazi-fascismo e o maior conflito da História da humanidade. 

As opções de governação de Heinrich Brüning, por si apresentadas como centristas, como já havia feito o anterior Chanceler social-democrata enquanto insistia em políticas igualmente contracionistas, acentuaram tão significativamente o empobrecimento da nação que lhe valeram-lhe o cognome de «Chanceler da Fome». Política macroeconómica contracionista, dificilmente adequada seja em que contexto for, errada naquele, que criou as circunstâncias propícias ao surgimento do extremismo político de direita, esgotadas que notoriamente estavam as políticas de partidos que se auto-definiam como sendo moderados e centristas.

Uma política míope e equivocada, uma austeridade fatal, esteve, pois, na génese da catástrofe que a Alemanha impôs a si própria e ao mundo. Como mostra a literatura histórica, com as consequências económicas e sociais daquela desastrosa política, o partido nazi foi aquele que eleitoralmente mais beneficiou.  

Ninguém pode, pois, espantar-se se as contas alegadamente certas de Keir Starmer ditarem simultaneamente a sua derrota e a vitória dos extremistas de direita acolitados no partido de Nigel Farage, o Reform UK. 

A Alemanha e Portugal, com os farsantes extremistas da Alternativa para a Alemanha (AfD) e do Chega, ambos fascistas, ou lá muito perto, como segundos partidos mais votados, podiam servir para um partido dito trabalhista tirar as devidas conclusões. Contudo, até porque é um partido liderado por um cúmplice objectivo do genocídio em curso, tudo indica que, infelizmente, persistirá no erro e insistirá nas políticas que tornaram Starmer num dos primeiro-ministros mais impopulares do pós-guerra.  

Nem sequer é necessário conjecturar sobre o futuro. Insistindo nas contas alegadamente certas, no absurdo de um orçamento que permanentemente visa o saldo zero ou o superávit, o Partido Socialista (PS), um partido da mesma família do trabalhismo britânico, já pagou com língua de palmo a sua rendição incondicional ao austeritarismo euro-liberal. 

Usando de uma possibilidade que resultou da convocação inesperada de eleições antecipadas, com cinismo e mediana argúcia tática, a Aliança Democrática (AD) fez o PS provar do seu próprio veneno. Os habituais joguinhos de poder do extremo centro. Aqueles que cavam desconfiança nos eleitores e os afastam das coisas políticas. 

Se o governo de António Costa estava preparado para impor restrições na primeira parte de uma legislatura de 4 anos e distribuir “benesses” apenas na segunda, a AD tendo tomado o poder sem maioria absoluta, começou na primeira hora do primeiro dia de um mandato que lhe caiu do céu (ou, tudo parece indicá-lo, terá sido da acção articulada da Presidência da República e da Procuradoria Geral da República?), a governar para alargar a sua maioria em novas eleições antecipadas que tudo fez para provocar e por isso, por razões eleitorais, não só, não efetuou cortes na despesa pública total, como concedeu imediatamente aos funcionários públicos os aumentos salariais há muito devidos e que o Partido Socialista planeava de forma calculista para a fase final da legislatura que viu interrompida.   

Assim, se a AD soube furtar-se habilidosamente às penalizações eleitorais que, mais tarde ou mais cedo, recaem sobre quem executa políticas austeritárias, não as executando, que ninguém se admire que, depois de ganhas as eleições, o país seja confrontado com cortes cegos e profundos na despesa pública e com as políticas fiscais e de rendimentos regressivas que são o genuíno programa da direita mais ou menos liberal.  

Assim sendo, tal como no passado, os fascistas estão à espreita e apostados em capitalizar o descontentamento que aí vem, sendo certo que, se forem bem sucedidos, o que teremos é o recuo em toda a linha de direitos, liberdades e garantias. 

Nós, à esquerda, estou seguro, nunca desistiremos do nosso país, da liberdade e da luta por um mundo livre da exploração do homem pelo homem.  

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Aceleração sem freios

De acordo com os dados mais recentes do INE, o valor mediano da avaliação bancária de imóveis atingiu no mês passado não só um novo máximo histórico (1.866 euros/m2), mas também a maior variação homóloga (16,9%) desde janeiro de 2011. Isto é, desde que há registos. Este novo aumento insere-se na tendência de aceleração da subida dos preços dese o início de 2024, depois de um período marcado pela redução progressiva dos aumentos.


Há um dado curioso na evolução recente deste indicador. Diz respeito ao facto de, contrariando a tendência registada até ao final de 2023, a variação dos preços - na perspetiva da avaliação bancária de imóveis - deixar de acompanhar a evolução da inflação. De facto, pela primeira vez, a uma estabilização dos valores da inflação em níveis mais baixos (a oscilar entre 2% e 3%) não corresponde uma estabilização dos valores da avaliação bancária, que disparam.

O efeito do aumento da procura na subida dos preços, com o contributo da descida das taxas de juro, surge assim como uma das hipóteses mais convincentes para explicar este desfasamento. Mas entra aqui também o incontornável efeito das medidas fiscais de incentivo à procura adotadas pelo governo da AD (a par da supressão dos escassos mecanismos de regulação do mercado), cujo simples anúncio foi suficiente - segundo os próprios agentes do setor - para uma aceleração do aumento dos preços ao longo de 2024.

Sublinhe-se, uma vez mais, que o problema não se resume, como continuam a tentar convencer-nos, a uma mera falta de oferta, na tentativa de escamotear que as procuras são hoje muitas e diversas, incluindo procuras especulativas internas e externas (que encaram as casas como meros ativos de investimento) e que, pela sua própria natureza, são potencialmente inesgotáveis. Para que assim, também de forma recorrente, continuem a rejeitar-se quaisquer medidas de regulação do mercado, sem as quais não será possível ultrapassar a atual crise de habitação. Aqui e lá fora.

Saber elogiar a fronteira


Alguém traduza este elogio já com uns anos: “A fronteira é o escudo dos humildes [os fortes são fluidos] (...) uma fronteira reconhecida é a melhor vacina contra a epidemia dos muros”. 

Graças à economia política soberanista de um Jacques Sapir sabemos que sem fronteira política, economicamente relevante, não há responsabilização democrática, nem capacidade de pilotar democraticamente a economia. 

Não é por acaso que os neoliberais sempre procuram erodir o impacto económico da fronteira política, meio crucial de erosão da democracia. 

Quem se recusar a pensar a fronteira, a explorar as suas virtudes, tentando evitar os seus vícios, corre o risco de a deixar entregue aos inimigos da democracia, alimentados pelo neoliberalismo e pelas suas consequências reacionárias.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Mais que uma dúzia


Quando partilhei as notas que a abaixo republico ainda não tinha lido este livro. De facto, faltou mais uma corrente, a franciscana, na economia sempre política e moral, com memória e capacidade explicativa. Na tradição da Doutrina Social da Igreja, esta visão parte da crítica à economia convencional, a que mata, e propõe uma alternativa com conexões com o institucionalismo, chamando a atenção para a importância normativa do pluralismo institucional, em modo economia mista, com claros limites aos mercados. Prometo voltar a este importante livro.

À dúzia  

1. A economia ecológica tem sacudido a complacência dos economistas convencionais, que tratam a natureza, quando a tratam, como se fosse “capital natural”. Tudo é aí comensurável, redutível a uma mesma bitola pecuniária. Avaliam os custos das alterações climáticas através de modelos com uma taxa de desconto, como se o futuro fosse um fluxo de custos e benefícios pecuniários mais ou menos certos, mais ou menos distantes, como se a multidimensional e incomensurável catástrofe não fosse aqui e agora, parte de conflito social sobre custos sociais. “A maior falha dos mercados da história” não se resolve com paliativos ineficazes, simulando mercados ou com taxas e taxinhas incapazes, mas sim com alterações nos modos de produzir e nas relações de propriedade e de coordenação que lhes subjazem – mais plano, menos mercado. 

2. A economia feminista tem colocado no centro do debate as questões da desigualdade de género – do “altruísmo imposto” às mulheres na esfera da reprodução social, em particular às mulheres da classe trabalhadora, aos seus custos, privatizados ou socializados, o que faz toda a diferença, sobretudo para elas: por exemplo, “quem paga pelos miúdos?” já é uma pergunta clássica. A economia feminista indica que um Estado social robusto faz maravilhas pela igualdade de género e de classe, do emprego à igualdade salarial, passando pela socialização do tal altruísmo, alimentando outros altruísmos, noutras esferas.

3. A macroeconomia keynesiana, em geral, e a teoria monetária moderna, em particular, tem avançado o nosso conhecimento sobre aspetos fundamentais da totalidade de uma economia monetária de produção moderna, que requer poder soberano na sua pilotagem, uma articulação entre Tesouro e Banco Central, por exemplo: um “grande Banco”, parte de um “grande Estado”, ao serviço da socialização do investimento, do pleno emprego e da eutanásia do rentista, através de taxas de juro tendencialmente nulas por comando e controlo, não é de outra forma. 

4. A economia institucionalista fundamental tem exposto a nossa dependência de infraestruturas coletivas cruciais para termos vidas longas, saudáveis e ilustradas, formas de capital social, do real, que, aliás, implicam uma dívida social à nascença e uma lógica intergeracional que só o Estado, domador do tempo e da incerteza, está em condições de garantir. 

5. A tradição soberanista na economia tem exposto a importância do protecionismo seletivo ou dos controlos de capitais, a relevância económica da fronteira política, sem a qual a economia não pode ser pilotada e democratizada. 

6. A economia desenvolvimentista e evolucionista, aplicada às dinâmicas industriais, tem mostrado a importância do “Estado empreendedor”, da política industrial robusta, incluindo para a missão de descarbonizar a economia. 

7. A economia marxista tem aprofundado a nossa compreensão sistémica da evolução do capitalismo, da globalização à financerização (termo de origem marxista que hoje toda a gente interessada no tema usa), passando pelo rentismo fundiário, uma das ausências flagrantes na economia convencional, e pelas dinâmicas conflituais dos sistemas de provisão, pensando, nos seus momentos mais “analíticos”, em utopias reais

8. A economia das desigualdades tem investigado os determinantes institucionais dos padrões de injustiça social, dos rendimentos à riqueza, e dos processos de igualização socioeconómica; articulada com a investigação na área dos determinantes sociais da saúde, tem confirmado, rigorosamente, que há uma economia que mata. 

9. Apesar de já não ser há muito um entusiasta deste programa com algumas décadas, reconheço que a economia comportamental tem sistematizado as “anomalias” dos humanos, que os afastam sistematicamente dos postulados do homo economicus, com implicações para o desenho institucional indispensável para a microeconomia, reconhecendo-se também por esta via que a economia é moral. Afinal de contas, as instituições enquadram e moldam as “preferências”, assim vistas como “endógenas”, o que é uma maçada para tantos modelos económicos e correspondentes apostas políticas. 

10. A história crítica do pensamento económico tem exposto as ruturas e continuidades entre liberalismo e neoliberalismo, não sendo ambos um slogan, antes instrumentos de poder; a nova história do capitalismo tem sublinhado como o racismo, o esclavagismo, o colonialismo ou o imperialismo configuraram um “capitalismo de guerra” em várias escalas. E que anda por aí, ó se anda. 

11. A metodologia e a filosofia da economia têm confirmado que factos e valores estão entrelaçados, que a separação positivo/normativo, tal como os economistas a afirmam, é uma fraude, que os economistas convencionais têm uma filosofia social espontânea e grosseira – uma variante do utilitarismo – e que o seu fetiche com o mercado e sua putativa magia produz, enquanto encobre, desigualdade socioeconómica e corrosão moral, sendo tudo menos neutro, quer nos seus efeitos, quer nas suas justificações. 

12. Numa disciplina demasiado regressiva, tem havido, apesar de tudo, progresso nas margens plurais, em diálogo com outras disciplinas interessadas na economia substantiva. O drama é que muito do progresso ainda passa ao lado da esmagadora maioria dos estudantes de licenciatura, de mestrado e até de doutoramento, dada a falta de pluralismo; e o progresso é demasiado ignorado nos “Prémios Nobel” (aspas, muitas aspas), com uma ou outra exceção, de Myrdal a Ostrom, passando por Sen. Sim, a economia substantiva é demasiado importante para ser deixada apenas a economistas com formação deficiente e com correspondente aposta neoliberal zumbi.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Onde estavam?

Alguém questionava há dias, conhecidos que eram já os resultados eleitorais, por que razão tinham «os portugueses de estar a levar quase todos os dias com a opinião de pessoas que representam hoje 2% dos eleitores?», associando as fotos de Daniel Oliveira e Carmo Afonso e acrescentando que «no domingo ficou demonstrado que a sua opinião não nos interessa nada» (vamos presumir que o «nós» não passa, sejamos otimistas, de um «eu magestático»).

Parafraseando uma canção infantil, é um comentário muito engraçado. Num país há muito escandalosamente dominado pela direita nos espaços de comentário político (como mostra um estudo recente do MediaLab-ISCTE), é espantoso que apenas agora - quando a direita tem maioria no parlamento - alguém venha exigir um reflexo da representação parlamentar na constituição de painéis de opinião, advogando - nestes casos - o silenciamento.


Para quem há muito denuncia o défice de pluralismo na comunicação social (que não é exclusivo das televisões), impeditivo de um verdadeiro debate e da existência de contraditório, nunca esteve em causa a supressão de opiniões. Mas antes, como é óbvio, um maior equilíbrio e, sobretudo, a garantia de representação e acesso ao confronto entre diferentes pontos de vista e perspetivas, sejam quais forem as configurações parlamentares saídas de eleições.

Fotografar a economia política internacional

A dignidade de uma família brasileira depois da conquista de terra, através da ação coletiva do MST. 

É nesta fronteira diluída que vamos encontrar Sebastião Salgado, o fotógrafo brasileiro da humanidade, que na década de 1970 se afasta do fotojornalismo convencional e encontra nos explorados do mundo o objeto de interesse para um trabalho que extravasava a reportagem e entrava nos territórios da arte de intervenção. Escolhas inequívocas, partindo da relação dos homens com a natureza e da sua relação entre si, marcada nos rostos e nos corpos. 

Na fotografia de Sebastião Salgado há uma denúncia mobilizadora, que opera em nós como um repto: é esta a humanidade com a qual sonhámos? Ao mesmo tempo, no violento contraste entre o poder deslumbrante da floresta e o poder repressivo dos homens sobre os seus semelhantes, encontramos no seu trabalho uma linha de coesão que nos é dada pela opção do preto-e-branco. A paisagem humana e a paisagem natural confundem-se, diluem-se, para nos dizer que este é o lugar que habitamos juntos. É esta opção que nos revela, também, o caráter político de Sebastião Salgado e o seu papel transformador.

Ler, ler, ler sempre Jorge C., sem esquecer que Sebastião Salgado foi economista, tendo-se doutorado nesta área na Universidade de Paris e trabalhado numa parte da sua vida em organizações internacionais. Um economista transformado em fotógrafo da economia política internacional, arriscaria em nota de rodapé. 

De resto, não conheço quem escreva hoje com mais acutilância política sobre arte, artista e sociedade no nosso país do que Jorge C.

Continuar a perguntar


Em 2008, considerava-me um europeísta crítico, alimentando ilusões sobre uma UE que reconhecidamente estava a destruir a social-democracia. 

Depois disso, desencadeou-se a crise da balança de pagamentos na zona euro, segunda parte da maior crise financeira desde a Grande Depressão, mal conhecida por crise das dívidas soberanas (não o eram) e o evitável austeritarismo redobrado com a troika. 

O diagnóstico não se alterou tanto quanto a prescrição, que passou a ser resolutamente eurocética. Não vejo razões para mudar agora de uma posição nacionalista de esquerda, ainda para mais com o euro-liberalismo cada dia mais autoritário e armado. 

Como recordar é viver, deixo por aqui um artigo que escrevi no Negócios em 2008:

Perguntas a um social-democrata europeu 

A crise do sistema financeiro neoliberal e a ameaça de uma grande depressão vieram, uma vez mais, revelar as insuficiências e perversidades da actual configuração da União Europeia. Há, então, um conjunto de questões que não podem deixar de ser colocadas. 

Creio que elas vão à raiz da profunda crise política e ideológica da social-democracia europeia como projecto de reforma igualitária das instituições fundamentais do capitalismo, ao mesmo tempo que apontam para as pesadas tarefas de um europeísmo crítico. 

Quem, nos anos oitenta e noventa, promoveu a abolição dos controlos nacionais de capitais, a liberalização financeira e a correspondente formação de conglomerados bancários com escala europeia sem criar um regime unificado de regulação e taxação do capital financeiro e uma agência europeia dotada de instrumentos para monitorizar e desincentivar o aventureirismo cíclico dos operadores financeiros? 

Quem avançou para a moeda única com um orçamento federal residual – que representa hoje perto de 1% do PIB europeu – e sem possibilidade de emissão de dívida pública europeia, numa utopia, sem precedentes históricos, de Estado mínimo que só pode acentuar a elevadíssima polarização regional e social, aumentar a crise económica e, em última instância, minar o projecto europeu? 

Quem criou um Banco Central Europeu independente do poder político democrático e com um mandato enviesado que sobe as taxas de juro ao mínimo risco de inflação importada e que demora uma eternidade a descê-las perante as forças da deflação que operam hoje à escala global num contexto de crise sem precedentes? 

Quem aprovou um Pacto de Estabilidade e Crescimento focado na miragem pré-keynesiana do equilíbrio orçamental como um fim em si mesmo, que contribui para que as políticas predatórias de privatização e de subversão da provisão pública passem por naturais e inevitáveis e que, se for hoje cumprido, assegura o regresso da depressão? 

Quem dotou a Comissão Europeia de instrumentos e de vontade política para não fazer mais do que alargar a lógica da concorrência mercantil a um número crescente e potencialmente ilimitado de áreas? 

Quem aceitou que as instituições europeias funcionem como aparelhos ideológicos para a promoção da tese errada de que os problemas de desemprego na Europa se devem aos mecanismos que ainda dão voz e protecção aos trabalhadores, mecanismos que contribuíram, nas décadas subsequentes ao pós-guerra, para uma virtuosa combinação de compressão salarial, pleno emprego e prosperidade? 

Em suma, quem criou um jogo concorrencial perverso numa UE alargada em que o que parece racional para cada país individualmente considerado – promover as suas exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho e seduzir o capital por via fiscal – gera um resultado global irracional sob a forma de um mercado interno desequilibrado e contraído por um défice permanente de procura salarial?

Infelizmente, a social-democracia europeia é parte crucial da resposta a todas estas perguntas. A meu ver, este é um dos grandes e menos notados paradoxos da história recente de hegemonia neoliberal: uma das forças que mais tinham contribuído para combinar justiça social, eficiência económica e amplas liberdades, combinação que só pôde florescer no quadro de genuínas economias mistas com uma presença pública forte, participou e esgotou-se no processo de promoção europeia das forças do mercado global que corroeram essas mesmas formações económicas. 

O mais trágico é que a União poderia constituir um espaço ideal, porque relativamente fechado e autónomo, para a instituição de políticas económicas keynesianas de relançamento económico, como parte de um processo mais vasto de criação de um jogo político cooperativo capaz de guiar as economias para uma trajectória ecológica e socialmente mais sustentável, geradora dos empregos do futuro. 

Diz-se que as grandes crises tornam inevitável o que parecia há pouco impossível. Não sei se assim é. Sei é que o inevitável passa por alternativas políticas decentes, ou seja, passa hoje por um pólo progressista e europeísta forte e autónomo, capaz de desafiar os partidos socialistas e de os forçar a abandonar as racionalizações oportunistas, sob a forma do social-liberalismo da Terceira Via, que os levaram a aceitar e a celebrar um projecto de integração europeia que acrescenta crise à crise. 

Se isto não acontecer, o inevitável pode bem ser a tentação de um refúgio nacionalista, agressivo e xenófobo – a tentação neofascista.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Vazio despovoado


“Precisamos de recentrar o PS nas pessoas”, afiançou Marina Gonçalves no Público.

Vá lá perceber-se porquê, lembrei-me de uma passagem de um poema de Natália Correia, brilhantemente popularizado por José Mário Branco, “somos vazios despovoados de personagens do assombro”.

A social-democracia é hoje uma das expressões do “governo do vazio”, como escreveu o teórico político Peter Mair, esvaziada que foi pelo consenso euro-liberal com décadas, agora militarista até à medula.

Ainda tinha ilusões europeístas, em 2008, quando escrevia no Negócios, e já assinalava esse esvaziamento. Um exemplo entre tantos outros da sua expressão nacional: dos menores parques habitacionais públicos da UE, em percentagem do parque habitacional, num país com um dos menores níveis de investimento público, em percentagem do PIB.

O fim da linha é esta conversa sobre as “pessoas”, totalmente desprovida de substância social, programática, de tudo. José Luís Carneiro será só a encarnação da “condição póstuma” de um P sem S e em breve sem P, mudo, sem vontade. Nada, zero, fim.

domingo, 25 de maio de 2025

Substância no tempo


Os resultados eleitorais no concelho e na península de Setúbal revelam a verdadeira chave de leitura destas eleições. Uma leitura que tem de ir para além do imediato. Tem de compreender e integrar as tendências de fundo. Deve articular-se com a mudança das placas tectónicas eleitorais nos países ocidentais. Dos EUA, ao resto da União Europeia (...) A pior coisa que se pode fazer, por ser intelectualmente arrogante e um total erro de análise, é culpar os eleitores (...)  PS, a AD e o resto dos partidos “responsáveis” continuam a tratar a UE como uma “vaca sagrada”, ao ponto de António Costa ter trocado a sua maioria absoluta de 2022 por um lugar à frente do, cada vez mais patético, Conselho Europeu.

A desmobilização é real. E não é apenas eleitoral — é social, cultural, comunitária. E a pergunta que se impõe, se quisermos ouvir mais do que o ruído de fundo dos telejornais que alimentam a desorientação geral, é simples: onde estamos nós quando não estamos em lado nenhum? A resposta não está em fórmulas mágicas, mas em algo mais exigente: assumir militâncias a sério. Assumir que é necessário sacrificar o aparente conforto do individualismo para recuperar a força da vida em comunidade. Que talvez o sacrifício maior seja abdicar de ver o mundo como um espelho de desejos, para vê-lo como ele é: desigual, injusto, mas transformável.

Excertos de dois artigos que ajudam a pensar, respetivamente de Viriato Soromenho-Marques e de Sofia Lisboa. Um filósofo social-democrata  e uma historiadora comunista a sério e sérios. Precisamos de pontos de encontro destas tradições: a ideia de frente popular começa pela substância histórico-filosófica, não é uma diluição das distinções - entre guerra e paz, por exemplo - na oportunidade eleitoralista de circunstância. 

sábado, 24 de maio de 2025

Obrigado, Sebastião Salgado


Vós sois o sal da terra. Mas se o sal se tornar insípido, com que se salgará? Já não serve de nada: só para ser atirado fora e pisado pelos homens. 
Mateus 5, 13

sexta-feira, 23 de maio de 2025

A universidade tem de ser popular

O modelo económico baseado no crescimento contínuo tem sido amplamente questionado à luz dos desafios ambientais, sociais e humanos do século XXI. Como podemos repensar a economia para além dos imperativos do PIB? Que alternativas existem para promover o bem-estar coletivo sem comprometer os recursos do planeta? Este evento reúne especialistas para uma reflexão sobre os limites do crescimento económico e as possibilidades de um modelo mais sustentável e inclusivo. A partir de três palestras e de um debate aberto a todos, exploraremos conceitos como o decrescimento, o património comum da humanidade e a necessidade de reorientar a economia para o desenvolvimento social.

Uma iniciativa da Universidade Popular de Coimbra na Faculdade de Economia da Universidade Coimbra.

O fim da solidariedade. O fim da igualdade

Tenho sentido que a verdadeira ideologia dominante na política de hoje é a daqueles que se acham superiores aos outros. É a era da vitória da arrogância e do egoísmo sobre a solidariedade.

Se olharmos ao resultado das últimas eleições, essa ideologia obteve maioria absoluta. Não obstante esta ideologia expressar-se de diversas formas, sem dúvida que tem origem no neoliberalismo e na sua quebra de toda e qualquer noção de coletivo, assente na defesa da concorrência sem freios contra qualquer esforço de cooperação.

Assim, as culpas e as soluções para a pobreza e desigualdades foram relegadas para cada indivíduo. É a chamada meritocracia, dizem. É a cada um que compete ser “empreendedor” e investir na sua independência financeira. Coaches e influencers prosperam a vender banha da cobra que empacotam num discurso puramente moralista que transforma problemas sociais em falhas morais de cada um.

Nesta circunstância, o instinto manda a cada um achar-se superior aos demais. Se já é mais rico, mais forte, mais bonito, ou mais culto, a superioridade é tida como evidente. Mas a ideologia chega aos desprotegidos e explorados também. Cada pessoa que se acha superior é um milionário em potência, que só não chega lá por causa dos impostos, por causa dos poucos e recentes direitos das mulheres ou da comunidade LGBTQIA+, por causa do Estado ou, com certeza, por causa dos imigrantes. Forma-se aquilo a que uma amiga chamou de hierarquia do oprimido que explica que portugueses trabalhadores adotem a defesa de descidas de impostos que beneficiam os mais ricos, ou o fim de serviços públicos que tratam todos como iguais, ao mesmo tempo que atacam outros trabalhadores pobres por serem imigrantes. Ao mesmo tempo, imigrantes adotam a mesma ideologia e atacam outros imigrantes, distinguindo entre supostos “trabalhadores” e “não trabalhadores”. É a ideologia da autointitulada pessoa-de-bem.

Os valores da igualdade e da solidariedade, que de uma forma ou outra, eram sempre fundamentais, até nas sociedades europeias dominadas pelo liberalismo social, pela democracia cristã ou pela social-democracia, tornaram-se completamente arcaicos e anacrónicos. Defendê-los tornou-se tão radical que é tido como comunismo.

Em contracorrente, passou relativamente despercebido, mas eu acho que esta foi a última e derradeira lição do falecido Papa Francisco quando, mantendo um costume com alguns anos, foi visitar uma prisão em Roma na última Quinta-feira Santa.

À entrada, perante os jornalistas, e com evidentes dificuldades, questionado sobre como se sente, Francisco responde: «Sempre que entro num local como este, pergunto-me sempre: “Porquê eles e não eu?”»


Não que a Igreja tenha sido, ao longo da história, grande exemplo da defesa deste princípio. Mas está aqui tudo. Francisco revela ali que nada de fundamental o distingue daqueles que são os marginalizados da sociedade, os últimos, os que cumprem penas pelos seus crimes. Francisco decide expressar a compreensão de que todos (todos todos) têm a mesma dignidade como seres humanos, o que, por sua vez, está na base da solidariedade e das obras de misericórdia que, para além de visitar os presos, mandam dar de comer a quem tem fome e dar de beber a quem tem sede, vestir os nus ou assistir os enfermos.

Nunca esta ideia esteve tão em causa e nunca foi tão urgente recuperá-la.

Validade e poder


Desde o início do que designam por contrarrevolução que os comunistas portugueses alertam para os efeitos redistributivos regressivos da diminuição dos direitos laborais e do correlativo aumento dos direitos patronais. 

Desde a adesão à CEE que os comunistas portugueses alertam para os efeitos desindustrializadores da integração de feição neoliberal desta periferia com economias estruturalmente mais capazes, ainda para mais num quadro de europeização com mecanismos de compensação manifestamente insuficientes. 

Desde os anos 1980 que os comunistas portugueses alertam para os projetos descaracterizadores da nossa mais radicalmente democrática Constituição, a de 1976, com particular incidência para a revisão de 1989. 

Desde aí que os comunistas portugueses alertam para os efeitos negativos no desenvolvimento soberano, no controlo democrático da economia e logo no resto da vida social, da reconstituição de grupo económicos privados em setores estruturalmente geradores de poder e de superlucros, provando-se de resto que aí só a propriedade pública é propriedade nacional. 

Desde os anos 1990 que os comunistas portugueses alertam, em livros e panfletos luminosos, para os efeitos desdemocratizadores do Tratado de Maastricht e suas cada vez mais graves sequelas, incluindo o crucial euro, tendo sido os primeiros a chamar a atenção para as suas tendências estagnacionistas. 

Desde sempre que alertam, em particular durante a troika, para os efeitos depressivos das políticas de austeridade orçamental, laboral e monetária, para usar o desdobramento luminoso de Clara Mattei

Desde há alguns anos que alertam contra os efeitos perversos do desmantelamento do SEF e contra a ideia de que se pode agir em matéria migratória ao serviço do capital mais explorador, como se o país tivesse capacidades de acolhimento ilimitadas. 

Desde há muito que alertam que o neoliberalismo alimenta o neofascismo, sendo este uma das expressões políticas das frações mais reacionárias do capital. 

Desde há anos que vêm alertando, inicialmente brutalmente isolados, que a cultura imperialista da guerra só alimenta o desperdício armamentista à custa dos Estados sociais e da vida, fazendo do anticolonialismo, do anti-imperialismo e logo do antirracismo modo de atuação, identidade. 

Posso continuar. Mas estão a ver o ponto: não há em Portugal quem tenha alertado tanto e acertado tanto, seja na academia, nos movimentos sociais ou em outras expressões de inteligência coletiva. Desafio-vos a comparar. 

Já estou a ver uma réplica: e estão cada vez mais fracos, o que é que isso interessa? Interessa muito. Podemos perder e ter razão. A política que interessa é a razão feita movimento. Quem desistir da análise séria está perdido. Quem desistir de distinguir validade e poder está perdido, já perdeu tudo. 

Não nos percamos. Haja sempre novo iluminismo radical

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Ponto de situação


Bom aluno de cada vez piores mestres, como diria o saudoso Medeiros Ferreira, o Público, tem, pelos vistos, acompanhado nas últimas semanas, quiçá com um ou dois dias de atraso, a imprensa ocidental lá mais para cima e para o lado, a dita de referência, na sua mudança sobre o genocídio.

E isto depois de muitos e muitos meses de complacência cúmplice, à boleia de uma muito subjectiva ideia de neutralidade, com o colonialismo sionista. 

Todo o Público? Calma, o reduto da opinião da última página, entre o extremo-centro e a extrema-direita, permanece consistente, tanto quanto vou lendo. 


Entretanto, o genocídio continua, com o mundo todo a olhar, mas só alguns a ver e a lutar, com as penas, com os corpos, com as armas que têm à mão, opondo a pulsão de vida à pulsão de morte do colonialismo e do racismo ainda inerentes ao capitalismo realmente existente.

Sempre uma fé nos peitos


Ajudou-me numa fase difícil, no ano passado, escrever o texto, que abaixo republico, para a Terra da Fraternidade, “um espaço independente e inclusivo de encontro e intervenção no âmbito religioso, alimentado por vozes de diferentes tradições e espiritualidades que lutam pelo progresso social”. Pode ser que ajude alguém lê-lo, num momento em que o futuro parece mesmo negro.

Uma fé nos peitos 

“O futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz.” A 11 de março de 1939, em pleno regime fascista, num mundo prestes a soçobrar perante as hordas nazifascistas, um jovem intelectual de 25 anos perscrutava o futuro. 

Atrevia-se então a afirmar o amor pela vida e o imperativo da felicidade, “dada pela satisfação da linha de conduta, pela satisfação de que se procede bem”. 

Álvaro Cunhal terminava o artigo, intitulado “um problema de consciência”, deixando um testemunho, fazendo a si próprio e aos outros uma promessa, consciente do que tinha já passado e do muito que haveria de passar: “Atravessar-se-ão tragédias com lágrimas nos olhos, um sorriso nos lábios e uma fé nos peitos”. 

Fé, notai, secular, certamente, mas fé, salto para o que, no fundo, é desconhecido, embora se possa antever aqui e agora em potencialidade. Este salto implica, sabia-o bem, a declinação de uma primeira pessoa do plural, feita de muitos, com a tal fé nos peitos, ali e agora. 

Em boa hora decidiram as Edições Avante! reeditar em opúsculo este artigo, acompanhando-o de belas ilustrações de Ana Biscaia, numa edição de primorosa simplicidade, impressa em Agosto de 2021 na tipografia Damasceno, em Coimbra. 

Adquiri-a na Festa do Avante! de 2024 e li-a numa noite quente, mas de janelas encerradas, numa Coimbra cheia de fumo, devido aos incêndios – “o exterior parece terrivelmente inimigo”, como afirmou Cunhal na primeira frase do artigo. 

Há consolo na leitura, embora isso não seja o mais importante. O mais importante é mesmo a renovação de uma fé, pelo testemunho partilhado, numa cadeia do tempo sem fim, tentado pela analogia. 

Desse opúsculo passei para outro, em busca de ligações: Comunistas e Católicos, um caderno também das edições Avante!, já de 1975. O seu primeiro texto é um excerto – “a mão estendida aos católicos” – do Informe Político ao Primeiro Congresso do PCP na clandestinidade. 

Já se nota o estilo inconfundível de Álvaro Cunhal, que fez trinta anos durante os dias que durou o Congresso, como informa Pacheco Pereira na sua monumental biografia, cada vez mais empática, digamos, de volume para volume. 

Nas mais duras condições nacionais e internacionais, Cunhal fazia as distinções que se impunham, em particular entre “política da Igreja Católica”, de recorte fascista – “não os combatemos pela sua atividade religiosa”, sublinhava – e a massa de trabalhadores católicos, “explorados e oprimidos como nós”. Seria um ponto de partida para o reconhecimento de que os católicos fazem parte da primeira pessoa do plural, para a qual contribuem de pleno direito. 

A política com p grande passa sempre por um esforço para fazer distinções moralmente justas e politicamente produtivas em conjunturas históricas bem concretas. E para isso o conhecimento não basta: é necessária uma fé nos peitos.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

As histórias não acabam


Sabemos tudo acerca do delicado tecido de normas e reciprocidades sociais dos ilhéus de Trobriand e acerca das energias psíquicas envolvidas nos cultos de carga da Melanésia; mas nas nossas histórias, a determinada altura, esta criatura social infinitamente complexa, o homem da Melanésia, torna-se o mineiro de carvão inglês oitocentista que leva espasmodicamente a sua mão à barriga e reage a estímulos económicos elementares. À perspetiva espasmódica contraporei a minha própria perspetiva. Em quase todas as ações da multidão oitocentista é possível encontrar alguma noção legitimadora.

E. P. Thompson, A economia moral da multidão na Inglaterra do século XVIII, Lisboa, Antígona, 2008 [1971], p. 22.

Esta passagem de um notável historiador e combatente pela paz não me sai da cabeça, vá lá perceber-se porquê. 

Experimentei substituir mineiro inglês oitocentista por trabalhador agrícola no Douro ou reformado algures em Beja, em 2025. Nos “estímulos económicos elementares” incluí imigração e sua força, por exemplo; e será que estes resultados eleitorais equivalem a um motim? 

Sabemos pouco sobre motivações populares. Supomos, espero que com realismo, que a oferta política reacionária, financiada por grandes capitalistas, condiciona a procura política popular, impondo uma certa “noção legitimadora”. 

Sabemos que o Chega tinha um deputado em 2019, quando havia meio milhão de cidadãos estrangeiros em Portugal e tem sessenta deputados meia dúzia de anos mais tarde, quando há mais de um milhão e meio, uma mudança súbita que alcandorou o tema a preocupação central para amplos setores. Sabemos que a velocidade da mudança conta pelo menos tanto quanto a direção na saliência de um tema.

Temos mesmo de pensar em termos de economia moral: consenso popular, consenso comunitário e suas determinações socioeconómicas, moralmente interpretadas, vindas de cima, de baixo e do lado. Entretanto, qualquer discussão sobre a economia moral, incluindo da imigração, tem de partir do capitalismo realmente existente, como o historiador marxista britânico sabia. 

Em 2023, escrevi uma crónica para o setenta e quatro sobre o tema. Deixo-a aqui outra vez, porque temos de continuar a trocar ideias sobre os assuntos.

Não podemos aceitar a globalização neoliberal 

Chama-se arbitragem laboral à forma como os capitalistas, num contexto de fronteiras abertas a todos os fluxos pela liberalização, atiram os trabalhadores de diferentes países uns contra os outros, numa corrida laboral para o fundo. Este contexto nunca pode ser perdido de vista, nem naturalizado. 

 Simplificando, há duas formas de organizar a corrida laboral para o fundo: deslocalizar ou ameaçar deslocalizar o capital para os países onde os trabalhadores são mais pobres, ou trazer os trabalhadores mais pobres para onde o capital precisa deles, tendencialmente com as condições de trabalho dos países de origem. Deslocalizam-se os capitais ou deslocalizam-se os trabalhadores. 

Num contexto de globalização neoliberal, a situação laboral piora muito nos países com condições de trabalho mais favoráveis e não melhora nos países mais pobres. Por outras palavras, a convergência nunca se faz por cima. 

No caso português, reforçou-se desde a troika uma economia de baixa pressão salarial, demasiado concentrada em sectores como a construção, o agronegócio ou o turismo, onde os patrões exigem uma força de trabalho barata e abundante. 

Surge, por isso, o discurso de origem patronal, medíocre e reacionário: “não há quem queira trabalhar”, “os portugueses não querem fazer certos trabalhos” (mal pagos), “estamos em pleno emprego”, entre outras fraudes nada inocentes. Claro, o problema são as remunerações e as ultrajantes condições de trabalho oferecidas por esse mesmo patronato, mas disso quase não se fala. Ou, quando se fala, pelo conhecimento público de uma situação de exploração mais flagrante, não se faz a ligação àquele discurso e à prática correspondente. 

Para uma certa procura, seria mesmo bom que não houvesse oferta, de modo a obrigar quem precisa de força de trabalho a garantir salários e condições de trabalho decentes, incentivando, no processo, investimentos geradores de aumentos de produtividade. Caso contrário, estamos a perpetuar a selvajaria laboral, trancados num modelo económico medíocre. 

Isto requer regras laborais exigentes para os patrões, que são quem tem mais poder, rigorosamente cumpridas. Mas também exige regulação dos fluxos migratórios por uma dupla razão: para defender quem cá está e quem quer vir para cá trabalhar, de modo que ninguém fique vulnerável perante o patronato. A dignidade do trabalho é para todos. 

 Do ponto de vista social e político, os que estão em profissões com barreiras à entrada, da língua à regulação – e que, por isso, atenuam a concorrência internacional de todos contra todos –, por exemplo, professores universitários, advogados, médicos, jornalistas, gestores, deveriam estar mais atentos aos que estão mais expostos às consequências da abertura irrestrita de fronteiras a todos os níveis. 

Sem fronteira económica, não há responsabilização política, nem democracia ou Estado social para todos. Por isso, os neoliberais sempre quiseram tornar a fronteira política economicamente irrelevante. 

A fórmula de Dani Rodrik, um economista político social-democrata, é justa neste contexto: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas desenvolvimentistas dos países hoje ricos, incluindo o protecionismo; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus padrões laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. 

E, sim, claro: um certo discurso pretensamente cosmopolita, mas complacente com a globalização neoliberal, também alimenta a extrema-direita.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Rir, chorar, lutar


Vale a pena ouvir o episódio Doutoramento Horroris Causa do programa Extremamente Desagradável

O Excelentíssimo Professor Doutor Rui Marcos fez um elogio borbónico ao Bourbon de Espanha que teve de tudo: da defesa da monarquia ao ataque à democracia, passando pela misoginia e pelo aparte veladamente racista sobre a última Branca de Neve, sem esquecer a forma tão especial, tudo numa hora de discurso. É obra.

Quando ouvi este tão distinto discurso, lembrei-me, vá lá perceber-se porquê, que o Digníssimo Senhor Reitor expulsou, a título pessoal, do ensino o Professor Pliassov, já aposentado e que lecionava graciosamente língua e cultura russas, ao mesmo tempo que manteve um relativo silêncio sobre o genocídio, perpetrado pelo Estado colonialista de Israel, na Palestina. Houve exceções a este padrão que mergulha na História mais negra da representativa Universidade de Coimbra, claro.

Sim, a nossa Universidade de Coimbra é a do 25 de abril, do punhado de professores que aí resistiram ao fascismo, dos muitos que construíram a universidade democrática e que resistem à desdemocratização em curso, iniciada com o neoliberal RJIES. 

Está sol, abri portas e janelas sem medo.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Notas com precisões


O fascismo vem mesmo por arrasto. Se as direitas funcionam por incessante repetição e se têm a hegemonia, então é caso para dizer que há algo a aprender com tal modo de operar. 

Deve reter-se uma formulação de um estratego de George Bush, lida há uns anos na repetitiva The Economist, e trazida para aqui de memória: «repetir, repetir, repetir sempre, e é só quando se está farto de repetir que o público começa a prestar atenção pela primeira vez».

Repito então cinco das seis notas que escrevi a seguir às eleições de 2024, acrescentando uma nova:
 
1. Precisamos de ter os olhos bem abertos: sociedades indigentes de comunicação há muitas e os milionários, alimentados por uma forma de economia política neoliberal com décadas, têm cada vez maior capacidade de converter dinheiro em poder político, pagando “stink-thanks”, financiando as direitas cada vez mais extremadas, controlando cada vez mais aparelhos ideológicos. 

2. Precisamos de cultura com fôlego, como no antifascismo histórico, que “ganhe raízes no solo pátrio”, que imagine com luminosidade uma comunidade e o seu povo, que ame essa comunidade e o seu povo solar. 

3. Precisamos de economia política que vá à raiz, que parta do Algarve e que suba por aí acima, que exponha um modelo de desenvolvimento do subdesenvolvimento e o seu círculo vicioso: baixa pressão salarial e austeridade, subinvestimento modernizador, alimentação de fluxos migratórios súbitos, serviços públicos subfinanciados e sobrecarregados, rentismo fundiário e corrupção, ascensão da extrema-direita. 

4. Precisamos de economia moral, ponto de intersecção da tal cultura com fôlego e da economia política radical, ou seja, de um modelo de desenvolvimento, feito por propostas de política, por instrumentos de política soberana a resgatar, que dêem os toques certos e com impactos sistémicos, contando uma história moral de um país plausível. 

5. Precisamos de mais e melhor organização, do YouTube ao sindicato, feita por militantes, ao invés de ativistas, solidária e acolhedora, sabendo sempre que as pessoas só se mobilizam por uma certa ideia esperançosa de Portugal e do mundo. A esperança é mesmo radical.

6. Precisamos de ser mais claros e intransigentes nas distinções, nos diagnósticos. É quando a relação de forças é mais desfavorável, quando estamos mais fracos e o inimigo mais forte, que temos mais urgência disso: Lénine em 1914, no fundo. Por exemplo, os verdes com bombas, o Livre, são parte do problema.

Lição universal


Sim e não

Sim, a viragem direitista confirmou-se. 

Sim, a capitulação da social-democracia contribuiu para esta viragem. 

Sim, a defesa da Constituição é a linha antifascista, como os comunistas portugueses têm insistido. 

Sim, há quem resista, há quem diga não. 

Não, não se desiste.

domingo, 18 de maio de 2025

Como se o blogue fosse um diário


Coimbra, 18 de maio de 2025 

Está um céu plúmbeo, tempo abafado, decidi ir a pé votar, um passeio até à Escola Avelar Brotero, passando pelo Jardim da Sereia e pelo Penedo da Saudade. Muita gente a votar de manhã: ide votar, este direito custou muito aos antifascistas a conquistar, como escrevi no Twitter do blogue. 

À vinda, passei pelo Jardim Botânico. Sentei-me no meu banco a ler. Acabei um breve e acutilante ensaio do historiador Enzo Traverso – Gaza perante a história –, primorosamente editado pela Antígona, como é hábito. Já há uns meses que não lia neste jardim. 

Da última vez, tinha acabado um romance histórico sobre a vida de Walter Benjamin, por coincidência um pensador marxista da história que muito influencia a ideia de melancolia de esquerda sobre a qual Traverso escreveu e que já usei para os meus propósitos

Nem por acaso, dado o que aqui escrevi ontem sobre o holocausto em Gaza, deparo-me com a seguinte passagem: 

“Postular a absoluta singularidade do Holocausto é epistemologicamente improdutivo (os acontecimentos históricos podem ser comparados), politicamente irresponsável (os crimes podem repetir-se, pelo que devem ser compreendidos e não apenas comemorados) e moralmente dúbio (uma vez que cria uma hierarquia entre as vítimas).” 


Levanto-me angustiado. Passa por mim um cortejo de excursionistas romenos, reformados na maioria. Tenho fome e sei que tenho comida e casa e filho à minha espera. Passarei a tarde com ele na nossa mesa de trabalho. Começo por eliminar comentários insultuosos e com ameaças no blogue (deve haver um qualquer desgraçado fascista que julga que me intimida), escrevo este texto e dedico o resto do tempo a rever um capítulo de livro que tenho de entregar. 

Ao fim da tarde, levá-lo-ei a casa da mãe, a cinco minutos a pé, e dirigir-me-ei ao Centro de Trabalho do PCP, junto à estação de comboios, desgraçadamente encerrada. Darei uma volta um pouco maior, passando pela Sé Velha. Talvez pare. 

Não estou só, nunca estive, nunca estarei e sei hoje melhor do que noutros tempos que a luta eleitoral é só um dos planos de uma luta mais vasta e que uma coisa é a relação de forças, o poder e as suas fontes, e outra é a validade dos argumentos. Gosto de pensar que estamos preparados para tudo. 

Haja distinções, haja esperança.

sábado, 17 de maio de 2025

Dia de reflexão, dias de luta


É a primeira vez que coloco fotos de crianças vítimas da fome no blogue. Mas o infanticídio é parte do genocídio, em 1945 e em 2025. Não podemos virar o olhar, deixar de ver. 

O censor Taborda da Gama, sonso reacionário à medida de um cargo criado pela imoral União Europeia para ofuscar o colonialismo sionista e o seu projeto genocida – “coordenador nacional da Estratégia Europeia para Combater o Antissemitismo e Promover a Vida Judaica” –, não vai impedir a comparação que se impõe neste dia de reflexão e nos outros dias de luta internacionalista. 

Em Portugal, não existe hoje um problema de antissemitismo, que não se pode confundir com um justo sentimento antissionista, parte da cultura anticolonialista. O problema é mesmo o desprezo pelas vidas palestinianas por parte da subalterna elite do poder. Sim, permanece uma linha de cor na economia política internacional, nas relações internacionais, como sublinhou há mais de um século W. E. B. Du Bois. 

E, sim, Taborda da Gama quer mesmo censurar, e fá-lo graciosamente, como de resto se viu num deplorável artigo no liberal Público, um jornal que tem sido uma imensa vergonha sobre o presente genocídio do povo palestiniano ao longo de bem mais de um ano, em linha com a história pouco secreta da ideologia que professa. Depois de mais de trinta anos, deixei de pagar para o ler e leio-o cada cada vez menos, embora esteja consciente que a política não passa por este tipo de opções individuais.

O que conta, isso sim, é o racismo inerente ao capitalismo sem freios e contrapesos e logo ao imperialismo estatocida; o que conta, isso sim, é a luta dos povos contra estas bestas sistémicas, contra a sua pulsão de morte, o que conta é a pulsão de vida inerente à autodeterminação dos povos, verdadeiro valor universal, porque passível de reconhecimento recíproco.

Reflexão sonora


Nada na vida se alcança sem dar sentido e amor à luta
Nada na vida se alcança sem dar sentido e amor à luta

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Em busca do poder de compra perdido

Texto publicado inicialmente no site Em Causa, da Causa Pública

A inflação deixou de ocupar os telejornais, mas não saiu da nossa vida. Apesar da taxa de inflação já ter voltado aos valores a que nos habituámos, a subida dos preços e o custo de vida são, a par da saúde, as principais preocupações dos portugueses, de acordo com o último Eurobarómetro do Parlamento Europeu. O preço do azeite ou dos ovos e o custo da habitação continuam a ser problemas que preocupam a maioria das pessoas.

Quando se discute o impacto da inflação na vida das pessoas, discute-se o poder de compra e a evolução dos salários “reais”, isto é, o aumento dos salários descontando a inflação. Podemos receber um aumento e passar a ver um valor mais alto no recibo de vencimento, mas se os preços dos produtos que costumamos consumir estiverem a aumentar, isso não significa que consigamos comprar mais quantidades – por outras palavras, podemos não ganhar poder de compra.

Em Portugal, o salário médio real registou uma quebra de 4% em 2022, quando a inflação atingiu o pico, mas a tendência inverteu-se depois: subiu 2,3% em 2023 e 3,8% em 2024. Estes dados foram referidos tanto pelo governo anterior como pelo atual, que os apresentaram como um sinal de melhoria das condições de vida e de sucesso da política económica. Na análise económica, a tendência tem sido a de considerar que as pessoas estão confusas e não têm capacidade de avaliar se o seu salário está a acompanhar os preços na economia – algo a que os economistas chamam “ilusão monetária”. No entanto, há motivos para pensar que a forma como medimos a inflação pode não corresponder à evolução do custo de vida real.


Como medimos o custo de vida?

É preciso começar por perceber o que é que medimos quando medimos a inflação. O indicador usado para medir a inflação é o Índice de Preços no Consumidor (IPC), que é construído com base num cabaz de consumo médio: um cabaz que procura representar, em média, quanto é que as pessoas gastam do seu orçamento em cada tipo de produto ou serviço. Partindo desse cabaz, as autoridades estatísticas recolhem informação sobre os preços de inúmeras variedades de cada tipo de produto ou serviço, desde fruta, arroz e carne ou peixe a roupa, eletrodomésticos, pacotes de telecomunicações, etc.

Para calcular a evolução média dos preços – a taxa de inflação da economia –, o que se faz é atribuir um peso a cada um destes produtos que procura espelhar o peso que, em média, têm no consumo das famílias. Imaginemos que, num dado ano, os iates passam a custar o triplo. Embora se trate de um grande aumento de preço, a esmagadora maioria das pessoas não os adquire normalmente, pelo que não terá grande expressão no indicador da inflação. Variações nos preços da comida, por outro lado, têm um impacto muito maior, porque fazem parte do consumo da maioria das famílias.

Este cálculo é útil, mas tem limitações que o impedem de captar dinâmicas relevantes sobre o poder de compra. O principal problema é que, quando nos focamos demasiado na média, podemos acabar por subestimar as diferenças que existem na sociedade. No caso do custo de vida, há duas dimensões que fazem com que a mesma taxa de inflação signifique experiências muito diferentes para pessoas diferentes: o nível de rendimento e a relação com a habitação.


Quem paga o quê?

O “cabaz médio” usado para medir a inflação não tem em conta que os padrões de consumo são diferentes consoante o escalão de rendimento das pessoas. Isto é importante porque nem todos os preços sobem ao mesmo ritmo e algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros.

Normalmente, as pessoas com menos rendimentos gastam uma percentagem maior do seu salário em produtos essenciais – energia, alimentos, etc. Foi precisamente nos bens essenciais que se registaram os maiores aumentos de preços. Em 2022, no início do surto inflacionista, a inflação foi de 7,8%, mas os preços da energia aumentaram 23,7% e os alimentos aumentaram 12,2%. Nos anos seguintes, a tendência atenuou-se, mas não se inverteu. O impacto pesa mais na carteira de quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nos bens essenciais.

                                 

Além de ser verdade que nem todos os preços sobem ao mesmo ritmo, mesmo dentro do mesmo produto, nem todas as categorias encarecem ao mesmo ritmo. Imaginemos o exemplo do leite: a estatística diz que o preço do leite aumentou, por exemplo, 10% num ano; no entanto, quando vamos ao supermercado, não há apenas uma categoria de leite, mas sim várias marcas diferentes. Na maioria dos produtos, existem marcas de fabricante, mais caras, e a marca branca, normalmente mais barata.

Isto é relevante porque, nos últimos anos, há dados que sugerem que houve subidas mais acentuadas dos preços nas categorias que eram mais baratas à partida – um fenómeno denominado cheapflation. Uma análise recente do Banco de Portugal, que confirma este fenómeno nos supermercados nacionais, concluiu que a maior diferença foi registada em produtos como a carne, peixe, leite, queijo e ovos. Ou seja, alimentos que fazem parte do pequeno-almoço, almoço e jantar da maioria das pessoas.

                                

Novamente, esta tendência tende a penalizar quem ganha menos: quem tem salários mais altos pode deixar de consumir produtos mais caros e trocá-los pelo equivalente da marca branca para se proteger do impacto da inflação, enquanto quem ganha menos, à partida, já tende a escolher os produtos mais baratos. Ao representar a evolução média dos preços na economia, o IPC não oferece informação sobre a variância dos preços – ou seja, sobre quais os produtos (ou as marcas) que estão a encarecer mais do que os outros.


Ter casa custa

A segunda dimensão, particularmente relevante nos últimos anos, é a da habitação. Em relação à habitação, a maioria das pessoas encontra-se numa de três situações: ou têm casa própria e já a pagaram, ou têm casa e estão a pagar o empréstimo, ou arrendam. No caso dos dois últimos, a prestação paga ao banco ou a renda paga ao senhorio são muitas vezes a principal despesa do mês.

Seria de esperar que esta despesa fosse particularmente relevante para o cálculo da inflação. Contudo, o cabaz do IPC não inclui a despesa com prestações. Quando a prestação aumenta, esse aumento do custo não entra para o indicador da inflação, mesmo que represente um aumento muito significativo do custo de vida. E embora se inclua uma categoria que corresponde às rendas das casas, esta tem um peso muito pequeno em Portugal: o IPC assume que a despesa com a renda, a água, a eletricidade e o gás ronda apenas 10% do orçamento familiar. Isto acontece porque a percentagem de pessoas que arrenda casa é reduzida (22,2%) face à de quem tem casa própria (77,8%) e, por isso, não paga renda.

Este aspeto tem implicações bastante relevantes para a forma como se mede o impacto dos preços da habitação. No caso de quem arrenda, a despesa com a renda costuma ter um peso muito maior do que aquele que é assumido no cálculo do IPC. E, no caso de quem tem casa própria e a está a pagar, quando uma subida das taxas de juro leva a um aumento das prestações dos empréstimos com taxas variáveis (que representam cerca de 90% dos créditos em Portugal, um dos valores mais altos da Europa), este não é refletido no índice usado para medir a inflação.

Ao não incorporar os custos associados às taxas de juro, o IPC não permite avaliar o impacto da política monetária na carteira das pessoas. O custo do crédito é uma componente essencial do custo de vida. Na verdade, a prestação da casa é, para uma parte significativa das pessoas, a principal despesa do mês e um dos principais fatores que definem o seu custo de vida. Desde 2021, a prestação média para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80%, passando de menos de €250 para mais de €440.Não é possível avaliar o poder de compra das pessoas sem ter em conta este custo.

                              

As limitações do indicador da inflação estão longe de ser meros detalhes técnicos. Na verdade, têm um impacto significativo na nossa vida: o IPC é o referencial usado nas negociações salariais entre empresas e sindicatos e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, leva a aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida dos preços.

A forma como medimos a inflação pode ajudar a explicar a discrepância entre as estatísticas e a experiência de boa parte das pessoas, para quem a crise da habitação está a agravar significativamente o custo de vida e a deixar cada vez menos rendimento disponível no fim do mês. Portugal foi o país da OCDE onde o fosso entre os salários e os preços das casas mais aumentou na última década. Não é de estranhar que o custo de vida não tenha saído do topo das preocupações das pessoas. Estranho é achar que estão simplesmente erradas, sem procurar perceber os motivos.